quarta-feira, 15 de março de 2017

Uma lição de Espinosa sobre a democracia

No longínquo ano de 1670, o holandês Baruch de Espinosa, primeiro grande filósofo moderno a defender abertamente a democracia como melhor forma de governo, dizia o seguinte em sua obra derradeira, o Tratado político: “Os homens estão necessariamente submetidos a emoções. (...). A Razão pode bem conter e governar as emoções, mas (...) o caminho ensinado pela Razão é muito difícil; aqueles que, por isso, se persuadem ser possível levar a multidão, ou os homens ocupados com os negócios públicos, a viver segundo os preceitos da Razão, sonham com a idade de ouro dos poetas, isto é, comprazem-se na ficção. Um Estado cuja salvação depende da lealdade de algumas pessoas e cujos negócios, para serem bem dirigidos, exigem que aqueles que o conduzem queiram agir lealmente, não terá qualquer estabilidade. Para poder subsistir será necessário ordenar as coisas de tal modo que os que administram o Estado, quer sejam guiados pela Razão ou movidos por uma paixão, não possam ser levados a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral. E pouco importa à segurança do Estado que motivo interior têm os homens para bem administrar os negócios, se de fato administrarem bem”.

Há mais de uma década, mais precisamente desde 2005, tenta-se vender a tese (com sucesso, diga-se) de que, no Brasil, o mal, a corrupção, o “agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral”, se concentraria principalmente em meia dúzia de líderes de um determinado partido político, cuja engenhosidade transgressora teria, inclusive, corrompido outros partidos e cidadãos, irresistivelmente arrastados nas engrenagens do “projeto criminoso de poder” daquele bando delinquente. Ou seja, quase três séculos e meio depois das palavras de Espinosa, ainda há quem se deixe levar – ou seja quase que forçado a acreditar – por aquela ficção, que ao confundir as esferas pública e privada, rezava ser possível garantir a boa administração do Estado apenas pela boa vontade de seres que, surdos às suas paixões, seriam qualquer coisa, menos humanos. Anjos, talvez, como diria Kant, mais tarde. E, claro, se um dos lados é o mal, aqueles que o denunciam seriam a encarnação do próprio bem. Os anjos da boa vontade. Ou, numa linguagem mais afeita aos nossos tempos, os “gestores”.

Digo tudo isso porque, se há algo de positivo no circo armado pela Lava Jato, mais particularmente nas tais listas de denunciados do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, independentemente do desfecho que terão (e não há porque não crer que os desfechos não serão equânimes, mas sopesados pela coloração partidária do acusado), é a de mais uma vez ilustrar que vícios e virtudes não são monopólio de pessoas ou grupos específicos. Também é a de tornar ainda mais patente que, não é o auto-declarado caráter virtuoso de alguns iluminados – “mitos” ou empresários “a-políticos” – mas, apenas uma profunda reforma de todo o sistema político, a partir da qual o Estado seja ordenado “de tal modo que os que o administram não possam ser levados a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral” independentemente de suas motivações pessoais, como hoje ocorre, que pode garantir a efetivação da democracia, isto é, o triunfo da vontade pública sobre o poder dos interesses privados. E, por fim, mas não menos importante: que todo o processo que culminou na deposição de Dilma Rousseff, e hoje se intensifica com o ataque frontal a direitos adquiridos, supostamente insustentáveis diante do também suposto desmantelamento do orçamento federal por conta da corrupção, não passou de uma gigantesca farsa.

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