segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O finito e o infinito: considerações sobre Deus, a morte e o sentido da vida - parte I

Antes de começar, convém fazer um alerta para não desapontar o potencial leitor: este texto nada mais é do que o fruto ainda verde de um exercício reflexivo livre. Por isso, em alguns momentos ele talvez se mostre mais confuso ou obscuro do que o recomendado, ou menos rigoroso do que o necessário. Espero, no entanto, que essas falhas não prejudiquem a argumentação central, posto que, ao fim e ao cabo, elas se originam essencialmente do caráter inacabado das linhas a seguir. Quer dizer, meu objetivo aqui não é assinalar respostas, mas tão somente esboçar uma meditação sobre os temas em tela a partir da mescla entre algumas ponderações filosóficas e experiências pessoais (eventualmente intransmissíveis para outrem).

Nesse sentido, um preâmbulo acerca de algumas daquelas experiências pode ajudar a situar o fio condutor dessa discussão. Desde a adolescência, ora em maior, ora em menor intensidade, me questiono sobre aquilo que poderia se definir como “a posição humana diante do universo” – ou, para tomar como referência o cabeçalho deste post, a relação entre finito e infinito. Em certo sentido, poderia dizer que esta é a questão de fundo das preocupações que me conduzem pela seara filosófica, inclusive no tratamento de temas sociais ou políticos, como tentarei mostrar mais adiante.

Tendo, já a partir daquele período, lançado dúvidas sobre a coerência das explicações religiosas tradicionais – identificando contradições nas hipóteses da criação divina ex nihilo do mundo, e da observância e proteção dos seres humanos, por esse mesmo Deus, em sua lida cotidiana – me encaminhei para leituras relativas ao funcionamento do universo de um ponto de vista estritamente científico, procurando auxílio para pavimentar algum outro caminho. Por exemplo, já durante minha graduação, em paralelo às leituras obrigatórias de Ciências Sociais e aquelas que empreendia no sentido de transitar rumo à Filosofia (mais especificamente, ao existencialismo de Sartre), estudei com certo afinco os trabalhos de divulgação científica de alguns autores de mais fácil acesso para um iniciante – Stephen Hawking, Carl Sagan, Timothy Ferris e Isaac Asimov foram os principais.

Infelizmente, meus parcos conhecimentos em ciências exatas e naturais me impediam de avançar em demasia em suas teorias. Ainda assim, essas leituras foram extremamente proveitosas, já à época (estamos falando de meados dos anos 2000), para consolidar, agora razoavelmente amparado na ciência, certas intuições acerca do problema que viso tratar. Em especial, fornecia uma comprovação material da existência de uma relação intrínseca entre nós e o restante do universo, que me propiciou um ponto de apoio diferente daquele sugerido pelo cristianismo, por exemplo, para pensar a relação entre o finito e o infinito. Afinal, como Sagan sublinhava, toda a matéria que nos compõe é, basicamente, fruto da morte de antigas estrelas – o fenômeno chamado de “supernova”. Somos, literalmente, poeira estelar que, um dia, poderá servir de fonte para o início de um novo ciclo cósmico. “Todo novo começo vem do fim de outro começo”, disse, em outro contexto, o filósofo romano Sêneca. Desde aquele momento, porém, suspeito que essa afirmação seja válida tanto no ciclo existencial, quanto no vital, além do cósmico.

Sendo assim, tratar da relação ser humano/universo envolve se deparar com uma questão espinhosa para todos nós: a da morte. E, com ela, ato contínuo, a da vida – e de seu sentido. Confesso que, embora me dedicando ao estudo de filosofias da existência, o problema da morte, especialmente, como ela nos coloca de frente com o problema da vida, estava submerso há alguns anos. Não obstante, em 2013, morando na França, recebi a notícia da morte de minha avó materna, com quem tinha grande ligação. Desde então, essas questões voltaram a se fazer mais presentes e, admito, há tempos tenho tentado escrever algo a respeito. Não porque me vejo próximo do fim – espero que não! – mas porque, no final das contas, essa é provavelmente a questão humana por excelência. Questão profícua, portanto, para alguém que tenta se ocupar com reflexões filosóficas.

Aqui mesmo no blog, em alguns posts, tentei referenciar alguns aspectos envolvidos nessa discussão: por exemplo, tratando do modo como alguns filósofos pensam a morte, sobre a contingência, a "fenomenologia da vida" de Renaud Barbaras, bem como sobre o conceito de Deus na filosofia de Espinosa. Aliás, este último merece uma consideração especial.

Ali, dizia que, para Espinosa, Deus é “um ser imanente ao próprio universo. Quer dizer, Deus é o próprio universo, sua causa imanente, a substância absoluta que – forçosamente infinita (se fosse finita, teríamos de admitir a existência de uma outra substância que a limitasse), se exprime de infinitos modos. Deus sive Natura, Deus ou Natureza: não há distinção entre ambos, mas a própria Natureza é Deus na medida em que é a expressão (também temporalmente infinita) de Seus infinitos atributos. Por conseguinte, não há relação de servidão entre o homem e Deus, pois não há criação, no sentido teológico do termo. Cada um de nós é resultado do processo de autoprodução de Deus: exprimimos seu Ser e Ele existe através de nós”.
  
Essa concepção soa perfeitamente articulável com a perspectiva científica de uma ligação material entre todos os seres mencionada anteriormente. Em minha opinião, Espinosa, ao propor a tese de uma relação imanente entre o finito e o infinito, entre o particular e o universal, entre o ser humano e a totalidade do universo (ou Deus, no vocabulário da Ética), forneceu uma fonte extremamente fecunda para balizar a discussão filosófica sobre o divino para além das propostas religiosas tradicionais. Se aceitamos a hipótese de um Deus transcendente, acolhemos, no mesmo gesto, a ideia de criação, bem como uma relação servil entre criatura e criador. A hipótese imanentista rompe essa lógica. Inclusive, permite assimilar algo como o “divino” ao Todo (e não a cada parte isolada, como em uma hipótese panteísta em sentido estrito, que par muitos é o caso de Espinosa).

Nesse sentido, cumpre lembrar que mais tarde, pelo mesmo caminho – e em que pesem as profundas diferenças entre ambos –, segue o pensamento de Hegel, para quem tudo o que existe (a Natureza e o Espírito) são manifestações imanentes da Ideia Absoluta (ou Espírito, em outra acepção). Com efeito, tanto em uma filosofia quanto em outra, o que se destaca é a recusa de uma divindade transcendente – logo, do conceito de criação, tal como exposto, por exemplo, no livro do Gênesis – em nome da compreensão de um processo de autoprodução imanente da substância infinita (Espinosa) ou do Espírito infinito (Hegel). Nos dois casos, encontramo-nos intimamente vinculados ao Todo, na medida em que não nos afastamos dele, mas somos parte dele, tanto quanto tudo o mais que existe – inclusive os outros seres humanos. Mais uma vez: independentemente de tudo o que afasta Espinosa de Hegel, bem como as eventuais críticas que se possa fazer a seus sistemas, é o agenciamento imanente entre finito e infinito que me chama a atenção.

Em consonância com este horizonte (aqui propositalmente esboçado de modo simplificado ao extremo), alguns fatos cotidianos, típicos do já findo período de férias, me instigaram a finalmente escrever essas linhas. Por exemplo, alguns filmes e séries que vi (ou revi) ente o final do ano passado e o início deste ano, e que, em alguma medida, permitem um diálogo com as preocupações filosóficas supracitadas.

Star wars
Em relação aos primeiros, começo pelo universo ficcional de Star Wars. Independentemente da imensa dose de fantasia, ou de questões comerciais típica de um blockbuster hollywoodiano, dois elementos (dentre outros) me atraem na saga: a percepção de um universo muitas vezes desconhecido, porque infinito; e a ideia de uma “Força” que transpassa esse universo e seria responsável por seu equilíbrio e harmonia. Com efeito, é como se os filmes de George Lucas despretensiosamente provocassem (ao menos, para mim) questionamentos decorrentes daquele horizonte inicial: não haveria coisas que podem estar acontecendo, ou que aconteceram, em partes infinitamente distantes da Terra, da qual não temos, e possivelmente nunca teremos, o menor conhecimento? Penso em relações entre seres, não necessariamente humanos ou humanoides, isto é, seres complexos ou com “poderes especiais”. Contudo, se eventualmente descobertas, tais relações poderiam ser reveladoras não apenas de que “não estamos sozinhos”, mas, mais importante, de que não gozamos de nenhum privilégio – como as grandes religiões precisam admitir. Isso porque, tudo o que existe no cosmos seria apenas uma emanação diferente da mesma força que coordena o universo, isto é, produto de seu próprio processo de efetivação. Vale lembrar, nessa direção, que na ficção de Star Wars, por exemplo, seres humanos convivem, sem regalias, com outras formas de vida, naturais ou artificiais.

É verdade que, inspirado no ateísmo militante de Carl Sagan, alguém poderia retrucar dizendo que essa força – “emocionalmente frustrante”, como ele definia – poderia ser assimilada à gravitação universal. É a gravidade, afinal, que mantém o universo em funcionamento, definindo a órbita dos corpos celestes, a formatação das estrelas, a produção dos elementos químicos etc. Com isso, perderíamos o lado “místico” que, para conservar a analogia, a “Força” de Star Wars carrega (expressa, por exemplo, na profecia do “escolhido”). Destarte, tudo se reduziria a uma força física, facilmente explicada em termos matemáticos? Não sou convicto do acerto dessa posição extrema, conquanto reconheça sua legitimidade. De qualquer modo, a ideia da existência de uma “força” que rege o universo, mas que não se confunde com o conceito típico de Deus e sua necessária transcendência (Substância espinosana? Espírito hegeliano? Gravitação?) me soa assaz provocante...

No próximo post, tentarei desenrolar um pouco essa trama em direção à questão da vida e da morte de uma perspectiva mais “existencial”.


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