quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sobre o público e o privado

Um dos traços característicos do pensamento político moderno é a cisão, operada desde Maquiavel, entre os domínios da ética e da política, com a consequente demarcação de dinâmicas distintas a reger estes planos. A partir desta separação, possibilitada e reforçada pela consolidação daquilo que o pensamento filosófico definiria como subjetividade, estabeleceu-se também uma separação análoga entre a lógica da vida pública e a da vida privada.

Em Kant, por exemplo, esta separação se expressa na diferenciação entre a lei moral e a jurídica – ambas frutos da “autonomia da vontade”, isto é, da própria razão humana. Se é assim, convém notar, não há contradição entre ser livre e respeitar a lei, posto que, tanto a lei jurídica, quanto a lei moral são, como dito no início, decorrentes de nossa própria capacidade racional. Porque toda lei impõe deveres, a questão aventada por Kant é saber se seu cumprimento depende ou não de uma coação externa: quando depende, temos uma lei jurídica (direito positivo); quando não, temos uma lei moral.

Não há correspondência necessária (exceto num cenário ideal) entre uma e outra lei. Segundo o filósofo, o controle imperfeito da razão sobre as paixões impede essa assimilação. Mas, a questão que mais nos interessa aqui é outra. Kant assinala que, no que diz respeito aos deveres morais, os seres humanos são responsáveis perante si mesmos, ao passo que, quanto aos deveres jurídicos, são responsáveis perante outrem. Assim, se configuram duas formas distintas de exercício da liberdade. A primeira, a liberdade moral (interna), pautada pela adequação da conduta aos comandos da razão. Este é o domínio concernente à Ética. Uma segunda forma de liberdade é a liberdade jurídica (externa): não ser impedido externamente de exercer seu próprio arbítrio. Este é o domínio do Direito.

Em Kant, importa destacar, o direito não se subordina a nenhum valor material (como a segurança, em Hobbes, ou a igualdade, nas teorias de inspiração marxista). Para Kant, a sociedade se organiza de modo racional quando nela cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, desde que sua ação não interfira negativamente na liberdade dos demais. Como diz o ditado: meu direito termina quando começa o seu. Logo, o Direito realiza, no plano das relações sociais, aquilo que, segundo o filósofo, constitui a essência do ser humano: a liberdade.

A partir desta visão, desenvolve-se a seguinte tese – um dos pontos elementares do pensamento liberal, do qual Kant, como se nota, é um dos principais formuladores: toda legislação deve assentar-se sobre princípios universais e estáveis, e não em preferências subjetivas, que variam de indivíduo para indivíduo e de acordo com a época. Com efeito, ao Estado, “união de uma multidão de seres humanos submetida a leis de direito”, cumpre tão somente promover o bem público.  Este, segundo Kant, nada mais é do que a juridicidade das relações interpessoais, isto é, a garantia de que meu livre arbítrio possa conviver com o livre arbítrio de outrem. Dito de outro modo, o Estado de Direito kantiano tem como dever exclusivo garantir aos indivíduos o direito a exercer externamente sua liberdade sem prejuízo à mesma liberdade de outrem. Tudo o mais, além disso, é de responsabilidade exclusiva dos próprios indivíduos, isto é, diz respeito à sua liberdade interna.

Do que foi visto, decorre o impedimento de que as autoridades públicas legislem sobre a felicidade, o bem-estar, ou os objetivos materiais da vida individual ou social. Por exemplo, adverte Kant, ninguém pode me obrigar a ser feliz segundo seus critérios.

Para além de qualquer crítica – como a óbvia constatação de formalismo do pensamento kantiano, convenientemente adotada pela política liberal, que não vê no Direito, por exemplo, um mecanismo de correção das desigualdades engendradas pelo capital –, o que interessa aqui é apenas realçar a distinção entre o domínio próprio da vida pública (da Política e do Direito como seu correlato necessário) e aquele da vida privada (das inclinações subjetivas, das preferências pessoais). Isso porque assistimos atualmente, no Brasil, tentativas indevidas de embaralhar estes domínios. Com efeito, não têm sido raros os movimentos que buscam impor preferências que dizem respeito exclusivamente ao plano privado – como as crenças religiosas –, tentando transformá-las em diretrizes para a confecção do direito público. Com isso, inviabilizam, por exemplo, o pleno reconhecimento das distintas orientações sexuais ou a legalização do aborto, para citar duas discussões latentes da agenda política contemporânea, a partir de critérios que não se coadunam com a universalidade requerida pela esfera pública. Na prática, para ficarmos nestes dois exemplos: no primeiro, essa universalidade se exprime fundamentalmente na garantia do direito de expressão da homoafetividade (o que hoje, no Brasil, dado o alto número de assassinatos motivados pelo preconceito sexual, passa pela criminalização da homofobia). No segundo, ela se materializa desde o ponto de vista da saúde pública: dado o fato do aborto, compete ao Estado asseverar as condições para que esta prática, para as mulheres que desejarem fazê-la, ocorra do modo mais seguro possível.

Assim, da perspectiva da Política e do Direito liberais (portanto, não estamos falando nada de "esquerda", "comunismo" etc.), o ponto que interessa é que a concretização dessas ações não implica em qualquer prejuízo à liberdade de outrem. Pelo contrário: assegura a liberdade àqueles que não podem exercê-la plenamente. Em outros termos: não se pretende obrigar alguém a se tornar homossexual (como, aliás, se fosse uma questão de escolha...), caso a homofobia se torne crime, tanto quanto nenhuma mulher será obrigada a interromper sua gravidez, se o aborto for legalizado. Tampouco alguma crença religiosa deixará de ser legítima, nem ninguém será forçado a abandonar seus valores, ou a concordar com o que quer que seja. Isso seria interferir naquela liberdade interna, o que não é papel do estado. Na verdade, o problema surge quando, em nome de certos valores e crenças pessoais, alguns indivíduos e grupos, cujo direito deveria ser o mesmo de todos os demais, têm seu livre arbítrio (de expressar seus sentimentos sem medo ou de dispor de seus corpos, por exemplo) negado.

Enfim, a dificuldade de compreender essas questões se concentra precisamente na confusão, propositalmente impetrada por certos grupos que, para ampliar sua zona de influência, se recusam a afiançar essa conquista da modernidade: a inviolabilidade do domínio subjetivo caminha de mãos dadas com a necessidade de bloquear qualquer tentativa de sequestro do domínio público por preferências, crenças, opiniões e inclinações que são – e devem continuar sendo – exclusivamente pessoais.


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