quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Filosofia do Direito de Hegel

Sartre diz, com razão, que o hegelianismo representa “a mais ampla totalização filosófica” jamais feita. De fato, Hegel talvez tenha sido o maior filósofo da história. Não porque tenha sido o melhor filósofo, o mais preciso ou algo que o valha. Falar em melhor e pior, no âmbito da Filosofia, é sempre temerário. Com frequência, equivocado. Mas, no que diz respeito à ambição de sua obra, bem como na elevação que ela proporciona à reflexão filosófica, provavelmente ninguém tenha conseguido, ao menos na época moderna, chegar ao nível especulativo do filósofo alemão. Com Hegel, diz ainda Sartre, o Saber é lançado à sua "dignidade mais iminente".
  
Não que o rigoroso sistema de pensamento hegeliano seja inconteste. Longe disso. Mas, dificilmente, uma análise da realidade contemporânea pode prescindir de sua contribuição. Mesmo que seja para negá-lo. Como Marx, que a partir de Hegel, chegaria à conclusão de que a tarefa da Filosofia pós-hegeliana não poderia ser mais a de “interpretar” a realidade social contemporânea, mas de “realizar” a Filosofia. Para isso, porém, já não bastaria a especulação filosófica – que o idealismo hegeliano, com sua reflexão sobre a sociedade burguesa alemã desde o ponto de vista dessa classe, teria esgotado. Era preciso “transformar o mundo”. Não por acaso, a crítica filosófica (a Hegel enquanto porta-voz da realidade alemã e de suas contradições intestinais) torna-se, em Marx, crítica à própria Filosofia, e esta se converte, finalmente, em teoria social. Teoria devidamente assentada na lógica dialética hegeliana, conquanto visando superar aquele idealismo e sua perspectiva burguesa.

Uma das obras mais importantes de Hegel – especialmente pelos desdobramentos que ela suscitaria, como a crítica marxiana acima mencionada – são seus Princípios da Filosofia do Direito.

O sistema hegeliano se articula a partir de uma unidade indissociável que tem como princípio fundamental a razão. Trata-se de uma concepção de totalidade, através da qual se pode constatar ao mesmo tempo tanto a unidade quanto uma relativa autonomia entre as diferentes partes do sistema filosófico. Em Hegel, nota-se o esforço teórico-prático e ao mesmo tempo analítico de construção de um sistema filosófico que se desdobra em torno de um único princípio de caráter essencialmente lógico-ontológico. Tal sistema se subdivide em três partes: a lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito. Essa última esfera se subdivide também em três esferas: espírito subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto. A Filosofia do Direito diz respeito à esfera do espírito objetivo, no qual o ponto de partida é o conceito de vontade livre. Ali, trata-se de desvendar a complexa relação dialética estabelecida entre o direito, a moral e a política.

Segundo Hegel, o direito positivo moderno fundamenta sua vitalidade e aplicabilidade tanto na propriedade privada quanto no contrato. Trata-se do direito strictu sensu, direito abstrato, que versa embrionariamente sobre a ideia e concepção de liberdade, expressa através do imperativo do direito: “sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas”. Neste domínio, típico do espírito subjetivo, Hegel elucida o movimento lógico do direito, apreendido substancialmente enquanto ideia ética.

Não obstante, a determinação lógica do conceito de direito só se efetiva plenamente no Estado. Isso significa que ele se materializa a partir do Estado. A materialidade que o Estado confere ao direito faz com que apareça a segunda concepção de direito. Trata-se do direito compreendido como algo mais abrangente. Nessa concepção ampla se encontra a ideia de reino da liberdade efetiva.

A Filosofia do Direito de Hegel, apreendida enquanto espírito objetivo, visa apresentar as condições de efetivação da essência do espírito, que é determinar-se como liberdade. O lugar designado para essa tarefa, tanto social quanto institucionalmente, é a Sociedade Civil. A sociedade civil hegeliana se define como um sistema de carecimentos, uma estrutura de dependências recíprocas na qual os indivíduos buscam satisfazer suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca. Além disso, neste domínio, asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses mediante a administração da justiça e das corporações. Em suma, para Hegel, a sociedade civil é o domínio dos interesses privados, econômicos e antagônicos entre si.

Por isso, somente no Estado – apreendido conceitualmente enquanto comunidade ético-política, eticidade – é que a determinação plena da liberdade humana se coloca de fato. Com efeito, fiel ao conceito de história como um movimento de negatividade e reconciliação, ou seja, como dialética, Hegel distingue a eticidade em três esferas: a família, a sociedade civil e o Estado. Este último aparece como síntese dialética entre particularidade e universalidade, na procura da totalidade. De acordo com Hegel, o Estado assume esta tarefa por conseguir articular em uma perspectiva de totalidade, tanto a vontade particular quanto a vontade substancial universal, e, o mais importante – pelo menos para as múltiplas formas determinativas da sociabilidade burguesa – sem anular o princípio da liberdade subjetiva. O homem, aqui, emerge enquanto um universal abstrato, desprovido de toda e qualquer particularidade e individualidade que o identifique. Trata-se de uma determinação imediata da pessoa, que só pode se exteriorizar pela propriedade privada, ou seja, estabelece-se a relação da vontade livre da pessoa do ser universalmente abstrato com a coisa externa.

Hegel pensa o Estado soberano como modo de organização necessário à existência da vida social. A rigor, não há liberdade fora do Estado, porque não há povo se desprovido de Constituição. Antes da organização estatal, há tão somente uma multiplicidade inorgânica de indivíduos. A instituição da Constituição, do Direito, representa e realiza a unidade (conceitualmente). Assim, enquanto realidade que extrapola o cenário individual, o Estado constitui o limite externo e formal para a liberdade do indivíduo, mas assume, ao mesmo tempo, a própria realização do seu direito à liberdade.
           
Enfim, no sistema hegeliano, a ética se encontra intimamente ligada à História e se realiza na comunidade política. São as relações sociais que determinam a vida moral do indivíduo. Hegel distingue entre uma moralidade subjetiva, individual, ligada à vontade, e uma moralidade objetiva, universal, domínio do Direito. O Estado hegeliano deve mediar os interesses públicos e privados, da sociedade civil e da sociedade política, garantindo a realização da vida ética, na qual os interesses daqueles dois domínios (cindidos) são reconciliados. O sujeito moral, pela mediação da família e da atividade profissional que exerce, reconhece que a sua existência depende do Estado. A vida ética é a reconciliação entre estes domínios, o que só é possível no Estado, realização da história da Razão universal, do Saber Absoluto, Estado de Direito.

Referência bibliográfica:

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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