terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A "Fenomenologia da vida" de Renaud Barbaras


Uma das maiores novidades filosóficas deste início de século XXI – independente do juízo crítico que se possa fazer a seu respeito, o que não é nossa intenção aqui – foi o surgimento da assim chamada Fenomenologia da Vida, esboçada pelo filósofo francês Renaud Barbaras. Tomando como ponto de partida o a priori universal da correlação do ente transcendente e a diversidade de suas aparições subjetivas, isto é, basicamente, a relação intrínseca da consciência com o mundo (que aparece a ela enquanto fenômeno), Barbaras elabora uma exaustiva crítica à tradição filosófica, notadamente aquela de viés fenomenológico que, segundo o filósofo, teriam falhado na apreensão exata dessa correlação. Mais precisamente, não teriam dado conta do sentido de ser do sujeito dessa relação. Mesmo filósofos como Merleau-Ponty e Patočka (que, para Barbaras, mais teriam se aproximado de tal compreensão), não teriam sido capazes de, ao fim e ao cabo, se verem livres de algum traço de substancialização (ao modo herdado da tradição cartesiana) ou reificação desse sujeito. Segundo o filósofo, a única maneira de evitar tais aporias é partir da própria correlação, para só então poder definir seus termos.

Pensar a correlação em si mesma é colocar em questão a própria possibilidade de aparição de um transcendente para alguém. É, por conseguinte, indagar o próprio ser do sujeito que sustenta o fenômeno. Como bem nota Barbaras, trata-se de apreender a univocidade e a equivocidade deste sujeito, ou seja, dar conta de um ser que é parte do mundo e, ao mesmo tempo, condição de aparição deste mesmo mundo. Dito de outro modo, elucidar a diferença antropológica – o fato de o homem ter consciência, ser fenomenalizante – sem cair no idealismo transcendental de Husserl, que expulsava a consciência do mundo, eliminando a comunidade ontológica entre ambos. De acordo com Barbaras, para se respeitar o estatuto da correlação, o sentido de ser do sujeito só pode ser definido como viver (vivre), na medida em que se toma este termo na unidade originária de sua dupla significação: viver como “estar vivo” (être-en-vie), leben, e como “fazer experiência”, “experimentar algo”, erleben. O próprio do sujeito é que ele vive – em ambos os sentidos do termo.
Ora, é precisamente o sentido deste viver que seria, então, a tarefa própria da investigação fenomenológica. A pergunta que se coloca, destarte, é a seguinte: como podem a vida transitiva da consciência (sempre relacionada a algo, intencionalidade) e a vida dos demais seres vivos proceder igualmente deste viver originário? De acordo com Barbaras, a única maneira de equacionar tal questão é pensar o viver como algo que vai além dos seres, inclusive da própria consciência. Por isso, dirá o filósofo, só poderia haver antropologia privativa. Diferentemente da perspectiva hegemonicamente adotada, a consciência não seria a vida (animal) mais alguma coisa, mas seria, ela mesma, uma involução, uma limitação inerente à própria vida que a transcende. Há, portanto, uma identidade fundamental da vida e da consciência. Por isso, para que algo como uma consciência possa emergir do seio da vida, é preciso que esta possibilidade esteja contida na própria essência da vida. Para o filósofo, é porque a vida é Desejo (em sentido ontológico ou transcendental), portanto, transitiva, intencional desde si mesma, que algo como a consciência (ou a intencionalidade) pode surgir. Assim, não seria a consciência que estaria na origem da intencionalidade, mas, ao contrário, a intencionalidade (do viver em sua unidade originária, isto é, como Desejo), que estaria na base do surgimento da consciência.

È preciso, porém, tomar o cuidado de não confundir desejo e falta: o que falta ao homem, assevera Barbaras, é a si mesmo enquanto sujeito; o desejo é desejo de nada, pois nada pode lhe satisfazer. Desejo é frustração. A consciência nasce dessa frustração. O Desejo é o fundo da consciência, o que lhe permite ser intencional, relacionar-se com o mundo, perceber o mundo. Assim, toda correlação entre consciência e mundo decorre de uma relação mais originária de Desejo e aquilo que Barbaras denomina de Aberto (Ouvert), quer dizer, a totalidade intotalizável do mundo. O que caracteriza o homem como ser fenomenalizante pertencente ao mundo é o movimento (manifestação própria do Desejo), na medida em que este conjuga a intramundaneidade do homem e a característica própria de sua existência. Nesse sentido, o Desejo é o sentido de ser e condição da própria correlação fenomenológica.

Finalmente, ainda duas considerações: em primeiro lugar, que há em Barbaras muito mais uma cosmologia e do que uma ontologia (no sentido de Heidegger, por exemplo): pois, o que neste pertencia do domínio “existencial”, torna-se, nas mãos do filósofo francês, essencialmente “vital”. Falta, porém, responder: de onde ou como surge a Vida? Em segundo lugar, vale refletir – o que não será possível fazer aqui – a propósito das perspectivas éticas que, a nosso ver, se abrem com a fenomenologia de Barbaras. Isto é, pensar em que sentido a “antropologia privativa” barbarasiana, sua compreensão do estatuto de correlação do homem com o mundo que, sem perder de vista aquilo que nos difere de outros seres, garante nosso parentesco intramundano no seio do Viver originário, pode responder a questionamentos éticos postos em nossa época. Dito de outro modo: a ênfase na vida contra a hegemonia filosófico-cultural do que Barbaras denomina “ontologia da morte” (isto é, a maioria das tentativas filosóficas precedentes de se pensar a vida, que a veriam sempre pela perspectiva de seu aniquilamento, como simples sobrevivência, ou seja, como “exceção” advinda ao mundo físico-químico da matéria, e cujo sentido de ser seria tão somente o de retornar este) poderia auxiliar na reflexão de um problema tão urgente quanto o de reverter nossa relação destrutiva com a própria vida em nosso planeta?

Bibliografia:

BARBARAS, Renaud. Introduction à une phénoménologie de la vie. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 2008.

Ver também: 
BARBARAS, Renaud. Vie et intentionnalité – recherches phénoménologiques. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário