quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Notas sobre meio ambiente e socialismo


Tema historicamente negligenciado pela esquerda (a começar pelo próprio Marx), o meio-ambiente foi colocado em pauta a partir dos anos 1970 até se tornar, neste século, um tópico obrigatório em qualquer discussão política progressista – especialmente para partidos e movimentos anti-capitalistas. Se as experiências pós-capitalistas do século XX nos demonstraram a impossibilidade de se construir o socialismo sem democracia, como nos lembrava Carlos Nelson Coutinho num célebre ensaio (A democracia como valor universal), agora é preciso acrescentar à gama de conceitos obrigatórios do roteiro socialista a preservação ambiental.

No entanto, até mesmo por conta da falta de bons referenciais teóricos a respeito, há dificuldade, sobretudo em setores de esquerda historicamente mais vinculados ao marxismo ou a teorias marxizantes, em assimilar essa pauta. Mesmo um partido grande e estruturado como o PT padece desse mal. Apesar disso, é preciso chamar a atenção para o fato de que a luta pela sustentabilidade ambiental recoloca na ordem do dia – e por vias inéditas – a utopia socialista. Senão, vejamos.

Desde o último quarto do século passado, o fordismo deixou de ser o padrão hegemônico de acumulação capitalista. Por conseguinte, a estrutura social que sustentava esse modelo (e dialeticamente se constituía a partir dele) foi severamente modificada. O mundo mais rígido e homogêneo do fordismo, da produção e do consumo em massa de mercadorias padronizadas, cedia lugar, como observa Terry Eagleton, “ao mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política clássica de classes cede terreno a uma série difusa de ‘políticas de identidade’”. É o modelo da acumulação flexível, segundo a definição do geógrafo David Harvey. A contrapartida mais evidente deste novo padrão de acumulação de capital, foi (e é) a crescente dissolução do antigo mercado de trabalho: a precarização dos empregos, a disseminação dos “subempregos” informais, bem como uma ofensiva inédita, em escala global, de flexibilização dos direitos, ajustada à nova realidade de dispersão espacial e temporal das unidades produtivas, bem como ao ritmo de giro cada vez mais acelerado do capital.

De um ponto de vista político, Marx enxergava um lado positivo no aparecimento da grande indústria: ela permitia a concentração, num único local, de centenas de trabalhadores que, explorados em iguais condições, poderiam mais facilmente adquirir consciência de sua situação em comum. Assim, a luta contra o capitalismo seria facilitada pelos próprios meios fornecidos pelo capital. “A burguesia cria seus próprios coveiros” dizia o célebre Manifesto Comunista.

No mundo do trabalho contemporâneo, essa concentração, quando existe, é cada vez mais residual. Agora há, na verdade, um movimento crescentemente diáspórico, relacionado à realidade – hoje duramente experimentada pelos europeus, mas que nos é bastante familiar – de desemprego estrutural, subempregos etc., que acirra ainda mais a competição entre os trabalhadores, exacerba o individualismo, e desacredita a grande política, como dizia Gramsci. Diretamente vinculada à velocidade do giro do capital em seu processo reprodutivo atual, vivemos a época do aqui-agora sem profundidade dimensional, a estetização da vida, o elogio do simulacro, ampliado de modo praticamente ilimitado e facilitado pelas novas tecnologias, sobretudo virtuais.

Politicamente, os referenciais objetivos de luta comum dos trabalhadores, que permitiam a construção de uma subjetividade em consonância com sua posição no processo produtivo, isto é, que permitiam alguma forma de consciência de classe, foram praticamente dissolvidos. As dificuldades atuais da luta sindical são um exemplo patente dessa conjuntura. Num mercado fragmentado, em que cada dia se trabalha (por necessidade) num local diferente, para um patrão diferente, muitas vezes sem direitos e/ou garantias trabalhistas mínimas, sem direito a férias etc., qualquer traço de solidariedade requisitado pela ação sindical (para não falar daquela ação política de maior magnitude) torna-se exíguo.

Todo esse amplo movimento, aqui apenas esboçado, cuja finalidade explícita nada mais é do que renovar as possibilidades de acumulação do capital diante das contradições estruturais do próprio sistema, e que ficou conhecido como neoliberalismo, foi devidamente legitimado nas últimas décadas pelo discurso ideológico pós-moderno. Em linhas gerais, contra visões “totalizantes”, amplas, da sociedade e da História, como é o caso do marxismo, que almeja construir uma nova sociedade universal, cujo princípio organizador se contraponha ao princípio vigente (também universal) do mercado capitalista (a assim chamada globalização), o pós-modernismo celebra uma experiência “volátil e efêmera”. Desconhecedora de “qualquer sentido de continuidade”, tal experiência “se esgota no presente vivido como instante fugaz”, a partir de “uma adesão à descontinuidade e à contingência bruta”, como explica Marilena Chauí. Na ideologia pós-moderna, prossegue a filósofa, a sociedade “aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares competindo entre si”. Assim, o pós-modernismo transforma as exigências (econômicas, políticas, culturais e ideológicas) do capital em virtude. Por conseguinte, reforça a percepção de que a luta política por uma outra sociedade já não faz sentido.

Ora, o problema da preservação ambiental coloca justamente em xeque a ideologia pós-moderna, ao mostrar que o problema do meio-ambiente é um problema universal. Que não se relaciona apenas a um momento efêmero, circunscrito a um espaço particular, mas que põe em risco, de fato, a própria sobrevivência da humanidade como um todo. E que, portanto, só pode ser resolvido nesta perspectiva.

Marx definia o capitalismo como “uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção”. Ao protestar contra a relação atual do homem com a natureza, o que a questão ambiental precisamente nos demonstra é a necessidade (e mesmo a urgência) de invertermos a lógica que subsume o homem ao capital. Afinal, a preservação do meio-ambiente e da vida em nosso planeta depende fundamentalmente do uso racional dos recursos finitos, da aplicação de nosso conhecimento no melhor aproveitamento desses recursos, da melhor distribuição da produção e do consumo sustentável. No entanto, tais exigências não podem ser satisfeitas numa conjuntura na qual a última palavra é da irracionalidade da acumulação do capital.

A preservação do meio-ambiente requer uma nova relação com a natureza, uma nova forma de utilizarmos os recursos naturais. Numa palavra, uma nova forma de trabalho. Mas a forma como consumimos está diretamente relacionada à forma como produzimos e distribuímos aquilo que foi produzido. Produção-distrbuição-consumo perfazem um nexo estruturalmente indissociável. Não se muda de fato um dos elementos sem que se alterem os outros. Isso significa que novas formas de consumo exigem formas racionais de produção, ambientalmente sustentáveis, que exigirão novas formas de distribuição, orientadas em atender as necessidades básicas de todos e minimizar (ou anular) o desperdício. Essa configuração é impossível na perspectiva da anarquia intrínseca ao mercado capitalista e da acumulação de capital. Há, de fato, uma contradição essencial entre uma produção de bens planejada e orientada segundo critérios racionais de sustentabilidade ambiental e a produção capitalista de mercadorias, com suas relações (inter-humanas e com a natureza) cujo fim último é tão somente reproduzir o capital. Por isso, cumpre sempre destacar que o controle do homem sobre seu trabalho, sobre sua relação com o meio-ambiente e os outros homens, sobre as formas de satisfazer as necessidades básicas de todos, só é possível a partir do momento em que começamos a inverter a lógica vigente.

Nesse sentido, a pauta ambiental traz positivamente, a partir de um problema objetivo da maior gravidade, um novo fôlego para a luta anti-capitalista. Sem cair no catastrofismo (que também pode servir a interesses escusos daqueles que lucram com a degradação ambiental), é preciso que o discurso socialista, em sua disputa por uma nova hegemonia, seja capaz de refletir e incorporar de fato (e não apenas de modo formal, como acontece muitas vezes) a defesa do meio-ambiente e de uma nova e saudável forma de o homem se relacionar com a natureza, orientado pela impossibilidade estrutural de o modo de produção atual responder satisfatoriamente a esse desafio. Com isso, mesmo diante das dificuldades inéditas de fazer acreditar a grande política, a velha questão sobre o sujeito histórico da mudança pode ganhar novos ares, inclusive pela possibilidade de incorporação de novos atores que, ausentes na perspectiva marxista clássica centrada exclusivamente na oposição insuperável capital-trabalho (sobretudo os setores “médios” da sociedade, e mesmo parte da “pequena-burguesia”), também podem se alinhar à causa socialista em nome da defesa necessária da vida e do planeta contra o “trabalho-morto” do capital.


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